sexta-feira, 03 de maio de 2024

O Coração

 

 A história da relação entre o  coração e a humanidade

 

 

 

Cupido - imagem de BouguereauAo longo da história o coração assumiu diversos significados para o homem, passando de “centro” de toda motivação humana a um simples órgão biomecânico.

Na antiguidade os egípcios concebiam o coração como o centro regulador das dimensões orgânica e espiritual. Nesse sentido, o coração não só regulava as funções fisiológicas como também era responsável pelos sentimentos morais em suas disposições para o mal ou para o bem. De tal forma que, nos rituais de mumificação, somente o coração era preservado.

Já o “povo de Israel” tinha uma visão parecida com a dos egípcios, mas com diversas combinações metafóricas. O coração é centro da vida material e espiritual, sendo, também, responsável pelos sentimentos morais e motivações humanas, além de cumprir uma função vital. Na bíblia há várias passagens que nos apontam o coração como centro da sabedoria, das disposições psicológicas, da vontade, das paixões da alma, etc. É importante ressaltar que, para os hebreus e os judeus da época, o coração assumia mais um significado de centro espiritual do que vital: é através do coração que o homem pode entrar em contato com Deus e Deus fala no coração do homem.

Essa visão do coração como centro do homem é chamada de cardiocêntrica. Entre os gregos pré-socráticos ela também estava presente, sendo o coração (kardia) muito cultuado nas artes enquanto centro dos sentimentos, paixões, pensamentos e encontro com os deuses.

Platão, enquanto aquele que deu corpo a metafísica, sendo, portanto, considerado o “pai da metafísica”, fará a divisão entre dois mundos, o da aparência (material) e o da essência (espiritual, intelectual), sendo este último considerado em suas múltiplas faces de virtude. Nessa perspectiva o cérebro, ou a cabeça do homem é o local mais importante; o cérebro passa a ser o órgão por excelência para se chegar a “essência” (racionalidade) das coisas, ou aquilo que é mais importante para o homem.

Embora essa concepção marca uma ruptura, o coração ainda não é visto como um órgão biomecânico, mas é o responsável pelas paixões e emoções ou aquilo que o homem deve “desprezar”, já que para o platonismo o mundo “aparente” causa excitações ao homem induzindo-o ao erro.

É importante ressaltar que antes de Platão, aquele que preparou o terreno para efetivar o pensamento racional socrático, os gregos em sua visão cardiocêntrica não colocavam o coração enquanto “julgador” das ações e motivações em medidas morais; já no pensamento platônico-socrático, com a razão enquanto sendo de suprema virtude, as paixões e as emoções reguladas pelo coração passam a carregar uma ordem moral, pendendo para o “bem” ou para o “mal”, o “bom” ou “ruim”, etc.

Tempos depois Aristóteles refuta Platão, concebendo o coração como órgão vital para todo o corpo. Nesse sentido, o coração é responsável pelas percepções e se configura como um centro emocional. Porém, para Aristóteles, os pensamentos e as idéias, ou aquilo que é do intelecto, não se vincula a nenhum outro órgão do corpo, sendo assim, na visão aristotélica o homem possui uma “alma” responsável pelo intelecto.

A partir daí as discussões irão girar em torno dos platônicos e neoplatônicos, defendendo o cérebro ou o coração como órgão central do homem. Deixa de ser uma disputa entre pensamento filosófico e tradição religiosa e vai percorrer até o início da modernidade nos embates de correntes filosóficas e científicas.

Com o desenvolvimento do cristianismo a concepção do coração dentro do Antigo Testamento é retomada e em suas variantes conotativas de “alma” e “espírito”, é concebido como centro psicológico e espiritual do homem, repleto de “juízes” morais que determinam as disposições para o “bem” ou para “mal”, entre outros valores.

Por boa parte da história podemos dizer que predominou uma visão cardiocêntrica, só então, com o médico William Harvey, no século XVII, o coração é desmistificado e colocado como responsável pela circulação do sangue, sendo, portanto, de vital importância no processo fisiológico, mas não o responsável pelos sentimentos, pensamentos, emoções ou paixões. Os estudos de Harvey foram fundamentais para que os fisiologistas dos séculos seguintes oficializassem o coração como órgão biomecânico.

Nessa trajetória percebemos que, no campo das ciências humanas, o coração foi destronado e o cérebro passou a ser o centro de controle do homem, um processo que se iniciou com Platão, ganha força com Sócrates e o seu culto à razão como meio para conhecermos o que é “verdade” e “mentira”, ganhou ainda mais força com o Iluminismo e continua sendo material de estudo para os neurofisiologistas na contemporaneidade.

Parece certo que a maioria de nós já tenha descartado a visão cardiocêntrica, restando às metáforas utilizadas na literatura, nas artes e na comunicação do cotidiano o uso do “coração” enquanto órgão do “sentir”. Na religiosidade a visão cardiocêntrica também ecoa, para alguns, mesmo conhecedores da fisiologia moderna, o coração e suas variações de alma e espírito ainda se configuram como um centro responsável pelas experiências com Deus e com o mundo.

Já o cérebro e a razão chegam aos dias atuais em suas discussões ora filosóficas, ora científicas. Certo é que houve grandes abalos no fim da modernidade, gerando o homem pós-moderno que parece ter nascido sem “coração” e sem “cérebro”, mas ainda respira com a cabeça e o peito abertos na mesa de cirurgia aguardando um novo “centro de controle”, e o “nada” vem sorrateiramente assumindo essa função.